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  • Foto do escritorCMurville

DE QUEM É A CULPA


O prédio residencial amanheceu sem uma gota de água nas torneiras. Que desagradável! Muita gente foi trabalhar sem tomar banho ou o café da manhã. Um clima de descontentamento geral se instaurou. Só podia ser culpa do governo que não fazia investimentos para garantir o abastecimento de água para a população, da prefeitura que não administrava corretamente os recursos hídricos da cidade ou dos políticos que desviavam verbas públicas destinadas a obras de infraestrutura para a realização de projetos particulares.

Porém, curiosamente, as outras casas na rua tinham água. O zelador foi chamado com urgência, a culpa era dele. Como havia deixado tal situação acontecer?! Deveria ter verificado a caixa d´água, as bombas e tudo mais. Mas o homem não soube resolver a questão, de modo que a administradora condominial também foi acionada. Havia contratado um incompetente!

Com o passar do dia, os ânimos foram aquecendo. Um absurdo ficar sem água tantas horas! Uma empreiteira contratada às pressas também não conseguiu restabelecer o suprimento de água. Mais um pessoal incompetente e culpado pela situação calamitosa se estender dia afora! Quem tinha chamado esses profissionais mequetrefes?!

Provavelmente, o vizinho dono de uma construtora queria ganhar uma grana em cima da cabeça dos outros. A culpa de todo aquele transtorno era dele. Onde já se viu se aproveitar dos outros assim?!

Mais algumas horas, tudo continuava igual e poucos efetivamente se dispunham a fazer qualquer coisa. Dona Maricota não entendia de hidráulica, Dr. Fulano estava muito ocupado, a turma da cobertura tinha coisas mais importantes a tratar, o morador de baixo estava exausto, o outro doente, a mulher do apartamento ao lado deprimida... E cabia ao vizinho se mexer, ele gastava muita água, tinha um monte de filhos! Se faltava água, a culpa era dele e da moradora de baixo que vivia com a máquina de lavar roupa ligada.

Não. A culpa era da faxineira do condomínio que, na véspera, havia lavado as garagens. Ou seria do jardineiro que teria deixado água correndo a noite toda? Era daqueles moleques que sempre aprontavam no prédio. O que haviam feito desta vez? Os pais não educavam mais os filhos, transferiam para a escola essa tarefa. A culpa era deles! Tinha ainda a filha do síndico que passava horas no chuveiro lavando os cabelos. Então, a culpa era do síndico! Aliás, onde estava ele no meio dessa confusão?

À noite, os moradores estavam extremamente irritados e continuavam sem entender o motivo da falta repentina de água, um bem sagrado ao qual todo mundo tinha direito. Talvez uma criança tivesse fechado um registro escondido no jardim, cortando o abastecimento de água do prédio, ou fosse uma brincadeira de mau gosto de algum sujeito amalucado. Dona Santinha já se perguntava por que Deus tinha resolvido privar todo mundo desse recurso indispensável à vida. Será que para ver como a turma de virava em momentos de desafio? Afinal, na hora do aperto cada um deixava emergir quem era de fato, soltava suas feras! Mas ninguém ali queria encarar seus podres. Tampouco se questionaria por que algo o perturbava ou por que estava tão irritado com o vizinho, a faxineira, o síndico... Senão teria que reconhecer que, quando temos um problema com qualquer pessoa, o problema é nosso! Era mais fácil acusar do que olhar para si. Jogar a culpa no outro servia como uma máscara para evitar rever comportamentos.

No dia seguinte, tudo amanheceu tranquilo, miraculosamente a água tinha voltado! Porém poucos aproveitaram o episódio sofrido para se curar de pensamentos egocentrados. Somente dona Santinha passou a ficar mais atenta aos desperdícios de água em sua casa!


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